Esse frio é quente
O sorvete ocupa um lugar especial na vida de todo mundo: é capaz de arrancar sorrisos e aproximar as pessoas. Para contar sua história, convidamos um dos maiores cronistas do Brasil
por Carlos Eduardo Novaes
Sorvete é puro prazer. Ninguém caminha para uma sorveteria pensando em se alimentar, em forrar o estômago, em juntar a fome com a vontade de comer. Quem come sorvete? Ou quem bebe sorvete? O sorvete se situa na doce fronteira entre a comida e a bebida, nos domínios do verbo tomar. Vamos tomar um sorvete? É verdade que por alguma razão também tomamos sopa, tomamos remédio, mas nenhum dos dois nos alegra as papilas como o sorvete. Pesquisas realizadas no Centre for Neuroimaging Sciences de Londres descobriram que o sorvete provoca um efeito imediato nas zonas de prazer do cérebro. De acordo com os testes, uma simples colher de sopa de sorvete é capaz de fazer brotar um sorriso na cara do consumidor.
Gosto de infância
O sorvete ocupa um lugar especial – a tribuna de honra, talvez – entre as iguarias que abastecem o ser humano. Tem gosto de infância. Quem conhece uma criança que não gosta de sorvete levante o dedo! Por mais sofisticados que sejam os sorvetes pós-modernos, lambê-los na casquinha é sempre uma volta ao passado. Convidar a pessoa amada a tomar um sorvete significa brindar o lado ingênuo e brincalhão do amor. Os outros lados – e são muitos – comemoram-se com o gosto adulto e sensual do vinho, do uísque, do champanhe. Ninguém sugere um sorvete em um encontro à luz de velas.
Há algo de mágico em nossa relação com o sorvete. Talvez porque tenhamos um prazo para terminá-lo antes que ele se derreta na taça, no palito, na casquinha e vire outra coisa, um creme, um mingau, uma vitamina. Comparado a outros acepipes, o sorvete (a céu aberto) tem muito pouco tempo de vida. É essa corrida contra o degelo que acrescenta um caráter lúdico ao prazer do gelado. Não tomamos um sorvete com os mesmos movimentos mecânicos e repetitivos com que tomamos uma sopa. Sorvêlo na casquinha – seu suporte ideal, segundo minha modestíssima opinião – requer atenção constante e uma ação criativa para não deixá-lo pingar nem transbordar pelas bordas. Às vezes exige movimentos contorcionistas com a língua, impondo-nos um trabalho de contenção, como se faz nos deslizamentos das encostas.
Os estilos para sorvê-lo – sempre na casquinha – variam, ainda que o prazer seja o mesmo. Os estilos, na verdade, desenvolveram-se na busca por um prazer mais intenso. Tem gente que movimenta a língua em círculos à volta do sorvete para depois “atacá-lo” pelo alto. Tem gente que já começa caindo de boca por cima (esses não usam bigode, certamente). Outros fazem pressão com a língua, tentando afundar o sorvete na casquinha para que os dois – sorvete e casquinha – terminem juntos. Muita gente se frustra ao perceber que o sorvete acabou e a última mordida será a seco no final do cone. A casquinha, por sinal, “casou-se” com o sorvete em 1904 nos Estados Unidos, inventada por A. Hamwi, um sírio que vendia waffles. Os registros não informam o que levou um vendedor de waffles a melhorar a vida da concorrência.
História deliciosa
A trajetória do sorvete é polêmica e controvertida. Nem poderia ser de outro modo, considerando-se que entre sua suposta invenção e a aparição do refrigerador – capaz de conserválo – transcorreram quase 30 séculos. O sorvete, imagina-se, sobreviveu a duras penas, derretendo e pingando pela estrada da história, até o momento em que o norte-americano Jacob Perkins inventou a máquina de refrigeração (1834). A partir daí o sorvete pôde se espalhar pelas terras quentes e garantir sua sobrevivência em todo o planeta.
Todos os sites consultados atribuem a invenção do sorvete aos chineses, que há 3 mil anos misturaram neve, mel e suco de frutas. Nenhum dos sites, porém, explica como os historiadores chegaram a tal conclusão. Não há notícias de qualquer paleontólogo que tenha descoberto um sorvete em suas escavações (mesmo nos montes nevados). Quem garante que o homem de Neanderthal já não tomava sorvete? A neve, as frutas e as abelhas estão aí desde que Deus concluiu sua obra. É quase impossível estabelecer a época real dos primeiros sorvetes, a não ser que os chineses tenham guardado uma receita por escrito. O sorvete se dissolvia com a rapidez de um relâmpago e – pior – não deixava pistas, como ocorre com ossos e utensílios da Antiguidade.
Contam que Nero (37-68 d.C.), imperador romano, mandava buscar neve nas montanhas e matava todos os empregados que chegavam com o gelo derretido. Penso que Nero ia longe demais, mas – reconheçamos – “perder” um sorvete, seja por vê-lo se liqüefazer (erro de cálculo do consumidor), seja por deixá-lo cair no chão, sempre provoca uma pontinha de decepção. Deixa na boca um gosto de coito interrompido.
Volta ao mundo
Tudo bem que o sorvete tenha surgido na China. A pergunta seguinte é: como ele saiu de lá para o Ocidente? Aí as versões variam tanto quanto seus sabores. Há quem diga que foi transportado por Alexandre Magno (356-323 a.C.) em potes de barro resfriados com neve. Outros afirmam que o sorvete chegou à Europa com Ricardo Coração de Leão (1157-1199), rei da Inglaterra que, retornando de Jerusalém, ganhou do sultão do Egito uma receita para fazer gelo de laranja (precisava de receita para isso?). Em se tratando da China, não poderia faltar uma versão com Marco Pólo (1254-1324), que teria levado o sorvete, junto com o arroz e o macarrão para a Itália. Uma quarta corrente afirma que o sorvete desembarcou na Europa pelas mãos dos árabes, que teriam aprendido a receita com os chineses. É a versão que mais se aproxima da verdade. Pelo menos a palavra “sorvete” vem do árabe xurba, que os turcos alteraram para xorbet e os franceses para sorbet.
Seja como for, todas as correntes se juntam para informar que a florentina Catarina de Médici (1519-1589) foi a grande garota-propaganda dos gelados deliciosos no mundo ocidental. Viajando à França em 1533 para se casar com o rei Henrique II, Catarina incluiu em sua bagagem algumas novidades que os franceses desconheciam, entre elas o perfume (acreditem!) e o tal do sorvete. Um tipo de gelado que devia estar longe da qualidade do perfume. Um sorvete ainda feito com água, como os nossos mais baratos picolés. Aqueles em que a gente chupa a groselha – lembra? – até restar um pedaço de gelo fincado no pauzinho.
O sorvete teve que esperar por mais de um século para incorporar leite e vos a seu preparo. A nova fórmula apareceu em 1648 na Inglaterra, concebida pelo doceiro do rei Carlos I, que era casado (o rei, não o simples doceiro) com Henriqueta, neta da Catarina de Médici. O sorvete experimentou uma mudança radical ao adquirir consistência cremosa. Hmmm. Uma novidade tão espetacular que sua receita foi trancafi ada em um cofre e considerada segredo de Estado, como uma doce bomba atômica. Não se sabe o que aconteceu depois (talvez, se tivessem perguntado a um membro da família Medici...). O fato é que em 1686 o tal do sorvete cremoso apareceu pela primeira vez em Paris, em um reduto dos filósofos iluministas, o celebérrimo Café Procope (hoje o estabelecimento mais antigo da Cidade-Luz), e foi um sucesso imediato. Dali ganhou o mundo.
Difícil imaginar que os Estados Unidos não participariam dessa história. Primeiro porque o país, já naqueles tempos, farejava negócios lucrativos pelo mundo, e depois porque os americanos se tornaram loucos por sorvete. Tão loucos que criaram o Dia Nacional do Sorvete (14 de julho – verão no hemisfério norte). Deve ser o único dia em que o hambúrguer é deixado de lado. A contribuição veio de Jacob Fussel, um poderoso leiteiro que montou a primeira fábrica de sorvete no país, em Baltimore (1851). A partir do encalhe do seu leite, Fussel teve a idéia de transformá-lo em ice cream. Do ice cream para o ice cream soda foi apenas um pulo! No início do século 20 surgiu o sundae banana split, um “monumento” ao sorvete somente comparável (para os fãs da comilança) às construções romanas...
Gelo nacional
O Brasil somente tomou sorvete em 1835. Um navio norte-americano, o Madagascar, aportou no Rio de Janeiro trazendo 167 toneladas de gelo em bloco que um comerciante conhecido por Deroche usou como base para os sucos de frutas. Foi um alvoroço na cidade! Não se falava em outra coisa ali entre o cais e as ruelas tipicamente portuguesas do Rio antigo. Vinha gente de outras regiões do país para conhecer a novidade. Na confeitaria Da Águia na rua do Ouvidor, de propriedade de Deroche, as filas davam voltas no quarteirão como a última estréia de algum filme de Spielberg. O único problema do comerciante era manter o sorvete em estado sólido. Sem refrigeradores – o gelo era armazenado com serragem em depósitos subterrâneos –, o sorvete precisava ser tomado logo após seu preparo. A solução foi marcar hora certa para seu consumo. Uma propaganda no jornal A Província de São Paulo de janeiro de 1878 anunciava: “Sorvetes – todos os dias às 15 horas, na rua Direita, nº 14”.
No fi m do século 19, a impossibilidade de transportar sorvete pronto de um país para outro obrigou o Brasil a procurar soluções caseiras. Deixamos de lado a tradicional mania de imitar os gringos, introduzimos nossa inigualável coleção de frutas tropicais na produção dos sorvetes. Fôssemos um povo organizado, com nosso passado devidamente catalogado, e hoje saberíamos nome e sobrenome do nosso primeiro compatriota a produzir um sorvete de caju ou de carambola. O imperador Pedro II, curioso por tudo o que era produzido em terras verde-amarelas, era apaixonado por sorvete de pitanga. No interior do país, no entanto, durante muito tempo o sertanejo rejeitou o sorvete. Para ele aquela coisa gelada, descendo goela abaixo, não podia ser saudável para um corpo quente e suado pelo sol inclemente da caatinga.
Evoluindo em lentas lambidas, o sorvete só ganhou escala industrial no Brasil em 1941. Os americanos instalaram uma fábrica no Rio de Janeiro, a U.S.Harkson do Brasil, mais conhecida como Kibon, que logo revolucionou o mercado local lançando um sorvete de nata coberto por uma fina camada de chocolate. O Eskibon era um protótipo que contrariava todos os modelos até então conhecidos de sorvete: não era picolé (pois não tinha palito, ora bolas) e também não era servido em taças ou casquinhas. A camada de chocolate que o envolvia obrigava o respeitável público a mordê-lo para chegar ao “recheio”, o sorvete propriamente dito. Não faz muito tempo a Kibon trocou o Rio por São Paulo, as carrocinhas amarelas desapareceram inelutavelmente do cenário da cidade, mas o Eskibon, um sexagenário, continua a exigir muita técnica “bocal” do carioca (e de brasileiros de outros quadrantes) para consumi-lo sem se lambuzar.
O meu sorvete
Em 1966, a produção industrial chegou à Bahia por meio de um jovem carioca, Carlos Eduardo Novaes, o “locutor que vos fala”. Talvez essa informação explique por que os editores de VIDA SIMPLES convidaram-me para escrever um texto sobre sorvete. Aos 24 anos, estudando direito em Salvador, peguei um dinheiro emprestado no Rio com um amigo de infância que trabalhava no extinto Banco Nacional e abri, com um sócio, uma pequena fábrica de picolés (cremosos, inclusive) que recebeu o nome de Bonzo, aproveitando a sonoridade do “bon” da Kibon. Anos mais tarde Bonzo virou uma marca de ração de cachorro, mas isso é outra história.
O sucesso lembrou Deroche um século antes no Rio de Janeiro. Até a inauguração da fábrica, Salvador, com seus 365 dias de puro e tropical verão, só conhecia sorvete de massa ou os tais picolés de gelo e groselha. Os carrinhos azuis da Bonzo deixavam o galpão abarrotados de sorvetes e estacionavam nas portas dos colégios onde os estudantes faziam fila – literalmente – para provar o creme holandês e o picolé de mangaba, as vedetes da companhia. Já provou picolé de mangaba? Hmmm, tem gosto de Brasil. Éramos os donos da praça, mas a alegria durou pouco. Seis meses depois a Kibon invadiu o mercado com suas divisões Panzer de enormes caminhõesfrigoríficos que transportavam sorvetes desde o Rio de Janeiro.
Baixamos o preço dos produtos e a multinacional não chegou a arranhar nossos lucros (existe pouca coisa tão lucrativa quanto sorvete). Era tanto dinheiro para um duro como eu que resolvi gastá-lo na Cidade Maravilhosa com jogo, boates e mulheres (o resto desperdicei). Desnecessário dizer que essa vida de playboy (expressão da época) abriu um flanco para meu sócio, que não precisou dar duas lambidas no picolé para perpetrar um desfalque irrecuperável na empresa. Desfiz a sociedade, dei umas boas porradas no cara e voltei para o Rio, sem um tostão e sem saber como recomeçar a vida. Fui trabalhar em jornal, tornei-me cronista e dramaturgo e passei anos sem tomar sorvete. Custei a me refazer do golpe. Hoje entendo que devo agradecer ao picolé por ter me realizado como jornalista e escritor. Não fosse a falência da fábrica, com certeza ainda estaria em Salvador escrevendo, quando muito, discursos para retribuir à Federação das Indústrias Baianas o título de Rei do Sorvete da cidade.
Delícia em expansão
É espantoso o baixo consumo de sorvete no Brasil, este país abençoado por Deus e prazenteiro por natureza. São cerca de 3,5 litros anuais per capita contra 20 litros na Noruega, um país nórdico que, com esse número, desmente a lenda de que sorvete não combina com inverno. Nossos fabricantes, no entanto, estão cheios de planos para o próximo verão. Na verdade, as grandes indústrias de sorvete planejam seus lançamentos com o mesmo cuidado e antecedência dos estilistas de moda e as montadoras de automóveis. O setor vai faturar este ano 900 milhões de dólares. E viva Catarina de Médici!
Entre os produtores de sorvete artesanal, que circulam pelos nichos da produção industrial, a tendência é a de seduzir o consumidor pela criatividade, uma criatividade às vezes delirante. Este ano chegará ao mercado o Bubble Cup, um sorvete com gosto de chiclete. Só não se sabe se vai dar para ficar mastigando o sorvete como se fosse goma de mascar. Os que gostam de sorvete com tempero terão a Tentação Vermelha, uma combinação de alecrim com calda de frutas silvestres. Quem preferir um sabor mais latino poderá recorrer ao habanero, sorvete cubano com jeito de coquetel de frutas tropicais (onde pontifi ca a toranja). A fruta-do-conde também vai ter seu sorvete (sem caroços). Talvez para homenagear os inventores, será lançado um sorvete de lichia – fruta de origem chinesa – com gengibre. Para um paladar mais europeu, teremos um sorvete ao vinho do Porto, calda de chocolate, pedaços de cookie e cobertura de chantilly.
Enfim, neste verão que se aproxima, ninguém poderá dizer que não vai tomar sorvete por falta de opções. É possível até que alguns desses sabores já estejam aguardando por você na sorveteria da esquina. Não precisa esperar a temperatura subir para agitar suas zonas de prazer. Se fosse para ser consumido só em dias de calor, o pessoal na Noruega tomaria sorvete apenas uma vez por ano. Lá o verão cai numa quarta-feira.
Texto extraído de: Vida Simples
Um comentário:
Boa esta história, heim? Ainda mais pra mim que AMO sorvete!!!
Bj,
Dri
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